Segundo Luiz Viana Filho, a periodização do comércio negreiro na Bahia divide-se em 04 ciclos: 1. ciclo da Guiné (a partir da segunda metade do século XVI); 2. ciclo de Angola (no século XVII); 3. ciclo da Costa da Mina e do Golfo do Benin (do século XVIII até 1815) e 4. fase da ilegalidade (1816-1851). Pierre Verger altera parcialmente tal periodização, subdividindo o terceiro ciclo em dois: 3.1. ciclo da Costa da Mina (três primeiros quartos do século XVIII) e 3.2. ciclo da baía do Benin (de 1770 a 1850) (OLIVEIRA, 1997, p. 40).
A partir das últimas décadas do século XVIII e ao longo do século XIX, foi o Sudão Central, região interiorana em relação à Baía do Benin, a procedência de africanos islamizados (hauçás, nupes, iorubás, bornos, borgus, etc.) levados como escravos para a Bahia, como conseqüência da jihad promovida, a partir de 1804, pelo xeque Usman dan Fodio, fundador do Califado de Sokoto, de cujas guerras expansionistas resultou o cativeiro de habitantes das áreas próximas à baía do Benin, particularmente no período compreendido entre os anos de 1804 e 1810. Assim, a presença de escravos islamizados na Bahia está relacionada a complexo desdobramento da História da África, em que se misturam religião e política, uma jihad e disputas por expansão territorial (LOVEJOY, 2000, p. 11-12).
Embora fossem os hauçás os africanos mais intensamente islamizados, os iorubás os sobrepunham, em muito, numericamente. Quanto à islamização dos escravos, depoimentos tomados quando da grande revolta malê de 1835 apontam para a sua ocorrência na terra de origem, em geral na infância e em escolas corânicas, com o aprendizado também da língua árabe (REIS, 1996, p. 9-10).
2. O Contato de Línguas e as Conseqüências Lingüísticas do Contato Luso-Árabe no Brasil Escravagista
À época da escravidão, no Brasil, sobretudo na Bahia, verificou-se o translado forçado de muçulmanos, que ali se aglomeraram. Além da migração, a interação entre escravos, seus administradores e senhores propiciou o contato entre dois grupos sociais étnico-lingüístico-culturalmente distintos.
A língua árabe, no contexto do Brasil escravagista, não viria a conhecer o prestígio que tivera em Al-Ândalus, o domínio político dos muçulmanos na Península Ibérica medieval, em que constituía a língua do conquistador, e onde tivera tão ampla difusão que, com efeito, tornara-se a língua inclusive das comunidades moçárabe e judaica, cujas próprias línguas tiveram o seu uso restrito à intimidade do lar e a contextos menos formais de comunicação (CORRIENTE, 1996, p. 5-6).
No Brasil, o árabe era língua conhecida por alguns membros de grupo social sem qualquer prestígio cultural ou sócio-econômico, e o seu uso parece ter se restringido ao campo religioso, uma vez que documentos produzidos neste idioma se tratam, em geral, de reproduções de versos corânicos, orações islâmicas, amuletos, etc. O seu domínio variava entre bom domínio, como apontam textos encontrados no Arquivo Público do Estado da Bahia e editados criticamente por Reichert no final dos anos 60, e domínio menos eficaz, de modo a resultar em textos multilingües, apesar de grafados com caracteres árabes ocidentais, e nos quais, além do árabe, os autores deixam transparecer línguas africanas, maternas ou línguas segundas, de maior difusão na África, e, eventualmente, o português (REICHERT, 1966, 1967, 1968; DOBRONRAVIN, 2004).
Assim, documentalmente, o árabe entre os escravos, no Brasil, era a língua da religião por eles professada, o islamismo, caracterizando-se, portanto, pela especialização de sua função.
Na coexistência, as “variedades lingüísticas” se caracterizam por diferente valoração na avaliação social, que se reflete na especialização das suas funções de uso. Designa-se A a variedade alta (ou H, do ing. High), de prestígio, e B a variedade baixa (ou L, do ing. Low), que recebe menor valoração social (FERGUSON apud TRASK, 2006, p. 82).
A língua árabe em que o corão foi escrito constitui a língua clássica, referência de aprendizagem escolar e referência estilística. Desconhecemos descrições do uso cotidiano de uma variedade diatópica da língua árabe entre os escravos, no Brasil, o que dificulta a configuração, com precisão, da relação entre as línguas árabe e portuguesa, aqui. Aparentemente sem uso expandido na própria comunidade escrava, conhecida antes por alguns de seus membros que dominavam ainda a escrita, não seria correto, talvez, afirmar que o árabe constituísse uma variedade B, em oposição à língua portuguesa, que seria a variedade A, de prestígio.
Certo é que a criminalização do árabe e do islamismo decorreu da associação destes às revoltas escravas ocorridas na Bahia nas primeiras décadas do século XIX, o que concorreu para o seu declínio, sendo que, um século mais tarde, os descendentes dos escravos afro-muçulmanos haviam sido absorvidos pelos candomblés ((QUIRING-ZOCHE, 2004, p. 232), supondo-se, na esteira, a perda do conhecimento da língua árabe.
Lüdtke, para caracterizar a diglossia, apresenta um esquema (LÜDTKE, 1974, p. 241-242), correlacionando esferas de emprego e categorias em que se classificam as línguas do mundo, conforme especificado a seguir.
Esquema de esferas de emprego:
I. Conversação (família, negócios, lugar de trabalho, círculo de amizade).
II. Cultura (ensino geral, rádio, imprensa, livros).
III. Ritual (liturgia, recitação, ensino teórico).
A partir das esferas de emprego, estabelecem-se as categorias lingüísticas:
I = dialeto; língua espontânea
I + II = língua de cultura espontânea; língua nacional
II + III = língua de cultura codificada
III = língua ritual
Segundo Lüdtke, consideram-se “normais” as seguintes situações lingüísticas (LÜDTKE, 1974, p. 243):
1. Predomínio de uma língua culta espontânea (língua nacional):
I + II
2. Língua culta espontânea empregada simultaneamente como língua ritual:
I + II + III
3. Dialeto e língua culta espontânea:
I / I + II
4. Língua culta espontânea e língua ritual:
I + II / III
5. Dialeto, língua culta espontânea e língua ritual:
I / I + II / III
Diglossia é uma situação particular, menos freqüente, em que se opõem um dialeto e uma língua culta codificada que também é empregada como língua ritual, isto é: I / II + III.
Aplicando a proposta de Lúdtke ao uso da língua árabe no Brasil da escravidão, evidencia-se a sua função exclusiva de língua ritual (III), caracterizando-se o contato luso-árabe pela configuração lingüística I + II (português)/ III (árabe), ou seja, o uso cotidiano da língua nacional e uso restrito do árabe no âmbito religioso.
Observe-se a não configuração, no Brasil, da situação lingüística que caracteriza a diglossia, diferentemente do verificado em Al-Ândalus, onde o árabe ocorria em todas as esferas de emprego (conversação, cultura e ritual, do que constituem prova, por exemplo, conhecidas obras do Pe. Pedro de Alcalá, publicadas em primórdios do século XVI, o vocabulário do árabe de Granada e a gramática da língua árabe elaborada para facilitar a sua aprendizagem por clérigos responsáveis pela catequese de cristãos-novos) e cujas variedades configuram todas as categorias propostas por Lüdtke (dialeto, língua nacional, língua de cultura e língua ritual).
O caráter ritual do árabe entre os afro-muçulmanos levou à sua perda quando da criminalização do islamismo e da sua língua de expressão. Portanto, no Brasil escravagista, a relação português-árabe, se já não se caracterizava pela diglossia, acabou por desaparecer, até que, a partir de 1860, com a chegada de imigrantes sírio-libaneses, generalizadamente designados “turcos”, tivesse início outro capítulo desta história.
3. Arabismos introduzidos no PB por afro-muçulmanos
Encontram-se registrados, no Vocabulário Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007), 25 arabismos introduzidos pelos escravos islamizados. Tais vocábulos integram apenas 02 campos semânticos, da religião e da culinária, verificando-se absoluta assimetria na distribuição. O campo religioso se subdivide em 08 micro-campos, ao passo que o campo da culinária registra apenas 01 vocábulo designativo de alimento (aluá), conforme ilustra o quadro a seguir.
Quadro 01 – Campos semânticos dos arabismos introduzidos por afro-muçulmanos no PB.
Campo Semântico
1. Religião
a) orações: açubá, adixá, aiassari, ailá, alimangariba. (05 itens; 20,83% das ocorrências*)
b) ministros de culto religioso: alicali, alufá, lemano. (03 itens; 12,5% das ocorrências)
c) crente: amim, malê, mussurumim. (03 itens; 12,5% das ocorrências)
d) templo: djema, maçalassi. (02 itens; 8,33% das ocorrências)
e) entidade: aligenum. (01 item; 1,66% das ocorrências)
f) objetos litúrgicos: tecebá. (01 item; 1,66% das ocorrências)
g) saudações e locuções interjetivas: barica da subá, bissimilai, maneco lassalama, sala maleco.
(04 itens; 16,66% das ocorrências)
h) preceitos: assumi, azaca, fazer sala, jihad, sacá. (05 itens; 20,83% das ocorrências)
2. Culinária
a) alimento: aluá. (01 item; 4% das ocorrências)
TOTAL 25 itens lexicais/100% de ocorrências
*Os percentuais dos micro-campos religiosos têm como referência o total de 24 itens do campo religioso, mas o percentual final indica a sua proporção no conjunto de 25 vocábulos introduzidos no português brasileiro pelos escravos islamizados.
4. conclusão
Considerando-se as hipóteses testadas neste breve estudo, a saber, que o legado dos escravos islamizados, no que concerne à introdução de arabismos no português brasileiro, não é numeroso e se restringe ao campo semântico da religião, concluiu-se pela corroboração das mesmas, haja vista o registro de 25 vocábulos legados pelos “malês”, dentre os 769 arabismos documentados na obra-fonte, perfazendo apenas 3,25% do total e a inserção de 96% dos arabismos “malês” no campo semântico da religião, ou seja, 24 vocábulos, dentre os 25 encontrados, integram o referido campo.
REFERÊNCIAS
CARNEIRO, E. (org.). Antologia do negro brasileiro: de Joaquim Nabuco a Jorge Amado, os textos mais significativos sobre a presença do negro em nosso país. Rio de Janeiro, 2005.
CORRIENTE, F. Novedades en le estudio de los arabismos en iberorromance. Revista Española de Lingüística, 26, 1, p. 1-13, 1996.
CRYSTAL, D. Dicionário de lingüística e fonética. Traduzido e adaptado por Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
DOBRONRAVIN, N. Escritos multilingües em caracteres árabes: novas fontes de Trinidad e Brasil no século XIX, Afro-Ásia, n. 31, p. 297-326, 2004.
HEYE, J. Sociolingüística. In: RECTOR, M. Manual de lingüística. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 203-237.
LOVEJOY, P. Jihad e escravidão: as origens dos escravos muçulmanos da Bahia. Topoi, Rio de Janeiro, p. 11-44, 2000.
LÜDTKE, H. Historia del léxico románico. Madrid: Gredos, 1974.
NEUVEU, F. Dicionário de ciências da linguagem. Trad. por Albertina Cunha e José Antônio Nunes. Petrópolis: Vozes, 2008.
OLIVEIRA, M. I. C. de. Quem eram os “negros da Guiné”? A origem africana dos escravos na Bahia. Afro-Ásia, n. 19/20, p. 37-73, 1997.
PAUL, H. Principles of the history of language. Translated from the second edition of the original by H. A. Strong. Maryland: McGrath, 1970.
QUIRING-ZOCHE, R. Luta religiosa ou luta política? O levante dos malês da Bahia segundo uma fonte islâmica, Afro-Ásia, n. 19-20, p. 229-238, 1997.
REICHERT, R. Os documentos árabes do Arquivo Público do Estado da Bahia – 3ª série, Afro-Ásia, n. 6-7, 1968.
REICHERT, R. Os documentos árabes do Arquivo Público do Estado da Bahia – 2ª série, Afro-Ásia, n. 4-5, 1967.
REICHERT, R. Os documentos árabes do Arquivo do Estado da Bahia, Afro-Ásia, n. 2-3, 1966.
REIS J. J. A revolta dos Malês em 1835. Disponível em: www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/a-revolta-dos-males.pdf. Acesso em: 17 jul. 2006.
REIS, J. J. Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão. Tempo, v. 2, n. 3, p. 7-33, 1996.
VARGENS, J. B. de M. Léxico português de origem árabe: subsídios para os estudos de filologia. Rio Bonito: Almádena, 2007.
VARGENS, J. B. de M; LOPES, N. Islamismo e negritude: da África para o Brasil, da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: UFRJ, 1982.
WARDHAUGH, R. An introduction to sociolinguistics. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1992.
WEINREICH, U. Languages in contact. 5. ed. The Hague: Mouton, 1967.
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