quarta-feira, 16 de setembro de 2009

CONTRIBUIÇÃO LEXICAL DA IMIGRAÇÃO SÍRIO-LIBANESA AO PORTUGUÊS BRASILEIRO

1. A Imigração Árabe no Brasil
A imigração árabe no Brasil conheceu 02 fluxos de entrada: 1. de árabe cristãos, no período compreendido entre 1860 e 1938, e 2. de árabes muçulmanos, entre os anos de 1945 e 1985 (OSMAN apud MONTENEGRO, 2002, p. 64).
A imigração recente é realizada por palestinos, que constituem 1/3 da população refugiada do mundo, e cuja imigração é caracterizada como de pós-guerra, decorrente da criação do estado de Israel, em 1948, ou em virtude de outras guerras (Guerra dos 06 Dias/1967; Intifada/1987, etc.). É, ainda, uma imigração pautada “em rede”, isto é, intermediada por parentes e amigos (JARDIM, 206, p. 171).

2. O Contato de Línguas e as Conseqüências Lingüísticas do Contato Luso-Árabe no Brasil da Imigração
As línguas em contato, a depender do seu prestígio e de suas funções de uso, designam-se A, a variedade alta (ou H, do ing. High), de prestígio, e B a variedade baixa (ou L, do ing. Low), de menor prestígio (FERGUSON apud TRASK, 2006, p. 82).
Para caracterizar a diglossia, Lüdtke apresenta um esquema (LÜDTKE, 1974, p. 241-242), correlacionando esferas de emprego e categorias em que se classificam as línguas do mundo, que ora aplicaremos ao referido contato no Brasil da imigração (restrita, aqui, conforme já se disse, à imigração de árabes majoritariamente cristãos, de origem sírio-libanesa e hipotetizada para o caso dos árabes muçulmanos).

Esquema de esferas de emprego:
I. Conversação (família, negócios, lugar de trabalho, círculo de amizade).
II. Cultura (ensino geral, rádio, imprensa, livros).
III. Ritual (liturgia, recitação, ensino teórico).

A partir das esferas de emprego, estabelecem-se as seguintes categorias lingüísticas:
I = dialeto; língua espontânea
I + II = língua de cultura espontânea; língua nacional
II + III = língua de cultura codificada
III = língua ritual

Segundo Lüdtke, consideram-se “normais” as seguintes situações lingüísticas (LÜDTKE, 1974, p. 243):
1. Predomínio de uma língua culta espontânea (língua nacional):
I + II
2. Língua culta espontânea empregada simultaneamente como língua ritual:
I + II + III
3. Dialeto e língua culta espontânea:
I / I + II
4. Língua culta espontânea e língua ritual:
I + II / III
5. Dialeto, língua culta espontânea e língua ritual:
I / I + II / III

Constitui efetivamente uma situação diglóssica aquela em que se opõem um dialeto e uma língua culta codificada simultaneamente empregada como língua ritual, ou seja, situação descrita como I / II + III.
Aplicando a proposta de Lüdtke ao uso da língua árabe no Brasil da imigração, tem-se que:
a) entre árabes cristãos, mais facilmente assimilados à sociedade anfitriã e imigrados há mais tempo, verificam-se as seguintes configurações: I (árabe dialetal)/ I + II (português) para as primeiras gerações de imigrantes e I + II (português apenas) para as gerações seguintes;
b) entre árabes muçulmanos, com maior preservação de características lingüístico-culturais, além da religiosa, é de se esperar pelo menos a ocorrência das configurações: I (dialeto árabe)/ I + II (português)/ III (árabe clássico) para a primeira geração; I + II (português) / III (árabe clássico) para as seguintes.

Tarallo e Alkmin apontam duas soluções para o bilingüismo: 1. “bilingüismo estável”, em que se preservam as duas línguas, sem mescla, de que resultam fenômenos como a diglossia e o code-switching (mescla das duas línguas no nível da sentença). 2. retorno ao monolingüismo, com o desaparecimento de uma das línguas em questão (TARALLO, ALKMIN, 1987, p. 12-13).
Entre os imigrantes árabes católicos parece ter se verificado a segunda solução, ao passo que entre os muçulmanos um maior número de relações estabelecidas entre a língua portuguesa e diversas variedades diatópicas e diastráticas do árabe são passíveis de coexistência, mas isto ainda está sujeito a pesquisa de campo, motivo pelo qual preferimos deixar em aberto a questão, levantando apenas possíveis hipóteses para investigação futura.

3. A herança lexical sírio-libanesa
Do total de 769 vocábulos registrados como entrada em verbetes do Vocabulário Português de Origem Árabe (Vargens, 2007), apenas 12 são empréstimos tomados ao árabe dos imigrantes sírios e libaneses aqui chegados nos séculos XIX e XX, o que corresponde a 1,56 % dos arabismos documentados na referida obra. A Figura 01 a seguir descreve a proporção de cada fonte étnica na transmissão de arabismos para a variedade americana da língua portuguesa.

Figura 01 – Fontes étnico-religiosas de arabismos no PB.

Fonte/Quantidade

No de Vocábulos
Percentual

Colonizador Português
732
95,19%

Afro-Muçulmanos

25
3,25 %

Imigrantes Árabes e/ou Muçulmanos
12
1,56 %

TOTAL

769
100

Todos os vocábulos legados ao português brasileiro pelos imigrantes sírios e libaneses integram o campo semântico da culinária. Os verbetes aqui apresentados foram extraídos de Vargens (2007).

Baba hanuche – S.m. [do ár. bābā gannūğ, ‘papai dengoso’, expressão introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Pasta de berinjela, com alho, azeite, limão e sal. Var. babarranuje.

Beleua – S.f. [do ár. baqlāwa(t), palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Doce foliado, à base de nozes, com mel, água de rosas e manteiga. Var. belewa.

Cafta – S. f. [do ár. kufta(t), pelo árabe dialetal kafta, ‘croquete, bolinho de carne’, palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Iguaria árabe, muito apreciada no Brasil, à base de carne moída, temperada com cebola, pimenta, hortelã e sal, assada no espeto ou no tabuleiro. Var. kafta. No séc. XX.

Esfiha – S.f. [do ár. isfīha(t), ‘esfiha’, palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Bras. Iguaria árabe, síria e libanesa, com massa de farinha de trigo e recheio de carne com tempero variados. Var. esfia, esfirra. A palavra é própria do árabe dialetal da Síria e do Líbano, porém já é atestada em dicionários árabes. No séc. XX.

Falafel – S.m. [do ár. falāfil, palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Bolinho com massa de grão-de-bico, com temperos, frito.

Homos – S.m. [do ár. hommus, ‘grãp-de-bico’, palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Pasta de grão-de-bico, temperada com azeite, alho, sal e salsa. Var. homus.

Laban – S.f. [do ár. laban, ‘leite, coalhada’, palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Coalhada.

Labna – S.f. [do ár. labana(t), palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Coalhada seca.

Mijadra – S.f. [do ár. muğaddara(t), pelo árabe dialetal mižaddara, palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Arroz com lentilha, servido com cebola frita no azeite.

Quibe – S.m. [do ár. kibba(t), ‘quibe’]. Iguaria da culinária árabe, típica da Síria e do Líbano, geralmente feita de carne moída e de trigo integral. Var. kibe. No séc. XX, Dicionário Etimológico Nova Fronteira, p. 654.

Tabule – S.m. S.f. [do ár. ‘tabbūla(t), ‘tabule’, palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Salada com trigo, tomate, salsa, cebola, sal e limão. Especialidade da cozinha síria e libanesa. No séc. XIX ou XX. Essa palavra é usada, principalmente, na região do Líbano e da Síria.

Tahine – S.m. [do ár. tahīn, ‘farinha’, palavra introduzida no português pelos imigrantes sírios e libaneses no Brasil]. Farinha.


REFERÊNCIAS
CRYSTAL, D. Dicionário de lingüística e fonética. Traduzido e adaptado por Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
FÍGOLI, L. H. G.; VILELA, E. M. Migração internacional, multiculturalismo e identidade: sírios e libaneses em Minas Gerais. XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu/MG, 20 a 24 de setembro de 2004.
FRANCA, R. Arabismos: uma mini-enciclopédia do mundo árabe. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife/EDUFPE, 1994.
HEYE, J. Sociolingüística. In: RECTOR, M. Manual de lingüística. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 203-237.
JARDIM, D. F. Os imigrantes palestinos na América Latina. Estudos Avançados, 20 (57), p. 171-181, 2006.
LÜDTKE, H. Historia del léxico románico. Versión española de Marcos Martínez Hernández. Madrid: Gredos, 1974.
MONTENEGRO, S. M. Identidades muçulmanas no Brasil: entre o arabismo e a islamização. Lusotopie, n. 2, p. 59-79, 2002.
NEUVEU, F. Dicionário de ciências da linguagem. Trad. por Albertina Cunha e José Antônio Nunes. Petrópolis: Vozes, 2008.
TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e lingüística. Trad. e adapt. por Rodolfo Ilari. Revisão técnica por Ingedore Koch e Thaïs Cristóforo Silva. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
VARGENS, J. B. de M. Léxico português de origem árabe: subsídios para os estudos de filologia. Rio Bonito: Almádena, 2007.
VARGENS, J. B. de M; LOPES, N. Islamismo e negritude: da África para o Brasil, da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: UFRJ, 1982.
VIEIRA, J. D. Dicionário de termos árabes da língua portuguesa. Florianópolis: EDUFSC, 2006.
WANIEZ, P.; BRUSTLEIN, V. Os muçulmanos no Brasil: elementos para uma geografia social. ALCEU, v. 1, n. 2, p. 155-180, jan./jul. 2001.
WARDHAUGH, R. An introduction to sociolinguistics. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1992.
WEINREICH, U. Languages in contact. 5. ed. The Hague: Mouton, 1967.

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Apresentação

Este blog foi criado para compartilhar informações acerca das conseqüências do contato entre as línguas árabe e portuguesa verificado em 03 contextos específicos: a Península Ibérica medieval, o Brasil escravagista e o Brasil da imigração.
A este tema se dedica a autora deste 1992, quando se apaixonou pelo assunto ao preparar o trabalho de conclusão da disciplina Filologia Românica II (sobre o domínio lingüístico ibérico) na graduação em Letras na Universidade Federal da Bahia.
O referido trabalho, sobre o vocábulo azulejo, descortinou um mundo aparentemente perdido, europeu e medieval, mas que, em verdade, continua vivo no Português Brasileiro, nos arabismos transplantados com o Português Europeu, aos quais se juntaram outros, adquiridos já na Terra Brasilis, por meio de escravos islamizados e de imigrantes arabófonos que ainda hoje chegam ao nosso país.
Os arabismos do Português Brasileiro requerem investigação pautada na etnolingüística e na sociolingüística do contato intercomunitário, complementando o que a literatura especializada já documenta, mas que se restringe aos arabismos ibéricos, mencionando, quando muito, o influxo lexical da migração sírio-libanesa no Brasil.