quarta-feira, 16 de setembro de 2009

CAMPOS SEMÂNTICOS

A literatura especializada em Filologia Românica ou Portuguesa contempla sobretudo o estudo do contato luso-árabe à Idade Média ibérica, quando se deu a importação de maior número de vocábulos da língua árabe, distribuído em ampla gama de campos semânticos, abrangendo aspectos da vida cotidiana, das ciências e das técnicas e mesmo da religião.
Entretanto, o português brasileiro também incorporou arabismos, devido à presença de afro-muçulmanos na sociedade escravagista nos séculos XVIII e XIX, com a predominância quase absoluta de arabismos do campo religioso.
No Léxico Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007), não se considerando formas derivadas e compostas apresentadas como subentradas em seus verbetes, estão registrados 769 arabismos portugueses. Destes, 25 foram legados pelos escravos ditos “malês”, perfazendo 3,25% dos arabismos documentados na referida obra. Apenas 01 pertence ao campo da culinária (aluá, designando alimentos, doce e bebida), os demais pertencem ao campo religioso e estão distribuídos em 08 micro-campos: 1. orações (açubá, adixá, aiassari, ailá, alimangariba); 2. ministros de culto religioso (alicali, alufá, lemano); 3. crente (amim, malê, mussurumim); 4. preceitos (assumi, azaca, fazer sala, jihad, sacá); 5. templo (djema, maçalassi); 6. entidade (aligenum); 7. objetos litúrgicos (tecebá) e 8. saudações e locuções interjetivas (barica da subá, bissimilai, maneco lassalama, sala maleco).
O enriquecimento lexical proporcionado por imigrantes árabes e/ou muçulmanos ao português brasileiro ainda não foi devidamente investigado. Essa imigração teve início na segunda metade do século XIX, mas ainda está em curso, com a chegada mais recentemente de palestinos, por exemplo. Ainda assim, a literatura especializada em lingüística cita apenas o legado sírio-libanês, dos primórdios dessa migração, de modo que qualquer afirmação sobre a contribuição de imigrantes árabes e/ou muçulmanos ao sistema lexical da variedade americana da língua portuguesa é precipitada, seja pela possível desatualização dos dados, dada a falta de pesquisas nas áreas de contato luso-árabe mais intenso (PR, RS), seja pelo fato de a literatura especializada datar já de algumas décadas.
Assim, com os dados de que dispomos agora, e a partir dos arabismos registrados no Léxico Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007), temos que apenas 12 vocábulos são empréstimos tomados ao árabe dos imigrantes sírio-libaneses, contribuição esta que perfaz 1,56 % dos arabismos documentados na referida obra. Todos integram o campo semântico da culinária (baba hanuche, beleua, cafta, esfiha, falafel, homos, laban, labna, mijadra, quibe, tabule, tahine).
O Léxico Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007) registra, além da herança afro-muçulmana e sírio-libanesa, outros 732 arabismos chegados ao Brasil com a língua do colonizador, o português europeu, e que constituem 96,75% do total dos registros.
Vejamos agora os campos semânticos em que, segundo diferentes estudiosos da língua portuguesa, organizam-se os arabismos portugueses. Considerando-se os campos citados por Elia (ELIA, 2004, p. 107), Houaiss (HOUAISS, 1986), Silva (SILVA, 2003), Silva Neto (SILVA NETO, 1988, p. 333), Teyssier (TEYSSIER, 2001, p. 22), Vargens (VARGENS, 2007, p. 221-225) e Vasconcelos (1956, p. 301-302), encontra-se o referido vocabulário nos campos semânticos de:

1. técnicas e produtos agrícolas: açude, almuinha, safra, sega; açúcar, café, tamarindo.
2. guerra e vida militar: alferes, algema, almirante, arrais, arsenal, bodoque, calibre, refém.
3. indústria e comércio: açougue, alambique, armazém, azenha, azêmola.
4. administração e finanças: aduana, alfândega, alvará, aval, leilão, tarifa.
5. profissões: alfaiate, almoxarife, magarefe.
6. ciências, técnicas e artes: algarismo, álgebra, zero; achaque, elixir, enxaqueca, nuca, xarope; alquimia; alaúde, atabaque, atambor, axabeba, cifra.
7. vestuário: babuche.
8. alimentação e culinária: almôndega, cuscuz.
9. compartimentalização espacial e acidentes geográficos: aldeia, arrabalde, bairro, rincão.
10. habitação e vida doméstica: alcova, alicerce, almofada, andaime, azulejo, chafariz, divã, saguão, sofá, taça, taipa.
11. fauna (inclusive pesca): anta, atum, gazela, girafa.
12. jogos: xadrez.
13. religião: imame, ulemá, mussurumim, islame, jihad, mesquita, minarete, moçafo, tecebá.

Observa-se a presença de vocábulos de origem árabe em ampla gama de áreas nas quais a cultura muçulmana deixou traços. Segundo Houaiss (HOUAISS, 1986), das cerca de 3200 palavras existentes no português primitivo, 2300 seriam herança latina, 800 seriam arabismos e apenas 106 resultariam de empréstimos germânicos. Vasconcelos reitera a importância numérica e “cultur-histórica” desses arabismos, em suas palavras os mais “notáveis” entre os elementos não latinos da língua portuguesa (VASCONCELOS, 1956, p. 299).
Silva, Teyssier e Vasconcelos vêem no contato prolongado, durante a Idade Média, e no refinamento cultural do conquistador muçulmano, que concorreu para a evolução das ciências, das técnicas e das artes mais variadas, em solo ibérico, a interferência do árabe no desenvolvimento das línguas ali em uso (SILVA, 2003; TEYSSIER, 2001, p. 22; VASCONCELOS, 1956, p. 299).

Referências
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Apresentação

Este blog foi criado para compartilhar informações acerca das conseqüências do contato entre as línguas árabe e portuguesa verificado em 03 contextos específicos: a Península Ibérica medieval, o Brasil escravagista e o Brasil da imigração.
A este tema se dedica a autora deste 1992, quando se apaixonou pelo assunto ao preparar o trabalho de conclusão da disciplina Filologia Românica II (sobre o domínio lingüístico ibérico) na graduação em Letras na Universidade Federal da Bahia.
O referido trabalho, sobre o vocábulo azulejo, descortinou um mundo aparentemente perdido, europeu e medieval, mas que, em verdade, continua vivo no Português Brasileiro, nos arabismos transplantados com o Português Europeu, aos quais se juntaram outros, adquiridos já na Terra Brasilis, por meio de escravos islamizados e de imigrantes arabófonos que ainda hoje chegam ao nosso país.
Os arabismos do Português Brasileiro requerem investigação pautada na etnolingüística e na sociolingüística do contato intercomunitário, complementando o que a literatura especializada já documenta, mas que se restringe aos arabismos ibéricos, mencionando, quando muito, o influxo lexical da migração sírio-libanesa no Brasil.