segunda-feira, 5 de novembro de 2012


ARABISMOS DO PASAPORTE 1A:
EXCLUSIVAMENTE ESPANHÓIS OU TAMBÉM PORTUGUESES?[1]

1. INTRODUÇÃO
Esta comunicação tem por objeto arabismos ibéricos documentados no livro didático Pasaporte 1A (ARAGÓN; GILL; BARQUERO, 2009), utilizado nos dois primeiros semestres do Curso de Extensão em Língua Espanhola da Universidade Federal do Piauí. Tem como objetivo conhecer arabismos espanhóis que integram o vocabulário básico da língua e a existência de cognatos portugueses.
Busca responder à questão: “Há cognatos portugueses dos arabismos espanhóis documentados no livro Pasaporte 1A?” Consideram-se arabismos vocábulos que têm origem na língua de Maomé. A hipótese testada é a de que há arabismos portugueses, cognatos dos arabismos espanhóis encontrados no livro didático Pasaporte 1A, cujo uso foi preterido por sinônimos de origem diversa.
Corroborou-se a origem árabe dos termos espanhóis no Diccionario de Arabismos y Voces Afines en Iberorromance (CORRIENTE, 2003), buscando-se os cognatos portugueses também na versão eletrônica do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2001) e no Léxico Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007).
Os arabismos espanhois são apresentados segundo ordenamento alfabético em verbetes que trazem a forma documentada no Pasaporte 1A – livro texto e livro de exercícios – e o cognato português, quando há, eventualmente seguidos de comentários.

2. ARABISMOS IBÉRICOS: HERANÇA DE UMA SÓCIO-HISTÓRIA COMPARTILHADA
                As línguas peninsulares têm, na constituição do seu sistema lexical, um componente particular que as diferencia dos demais idiomas românicos: a grande contribuição da língua corânica, sua 2ª fonte de empréstimos vocabulares, o que a coloca atrás apenas da língua latina, sobretudo no que respeita ao espanhol e ao português (VASCONCELOS, 1953, p. 333).
                A própria disposição dos atuais domínios linguísticos peninsulares resulta do processo de retomada aos árabes dos territórios por eles ocupados ao longo de boa parte da Idade Média ibérica, no que se conhece por Reconquista, quando os reinos cristãos, estão encolhidos nas montanhas nortenhas, se expandem verticalmente em direção ao sul, legando à Península Ibérica três largas faixas nas quais se falam, da esquerda para a direita, o português, o espanhol e o catalão (ILARI, 1998, p. 170).
                Mas nem sempre foi assim. Conforme já se assinalou, a Península Ibérica conheceu uma divisão pautada na religião professada pelos seus habitantes: a Espanha, cristã, ao norte e Alandalus, muçulmano, ao sul. O termo Espanha (< lat. Hispanĭa), então, designava tão só as regiões ibéricas anteriormente integrantes da Hispanĭa Romana. Já Alandalus constituía uma entidade política arábigo-islâmica cuja história esteve em sua maior parte estreitamente ligada à política norte-africana (THORAVAL, 1996, p. 30; 117-121).
                Uma parte da população cristã de Alandalus acabou por arabizar-se em vários aspectos, a exceção do religioso: na vestimenta, nas diversões, na alimentação. Sua língua românica, com efeito, a par de se enriquecer com inúmeros arabismos, passou a ser grafada com caracteres árabes. Sua língua é equivocadamente dita moçárabe, designação atribuída aos seus falantes, por indicar-lhes sua participação em cultura híbrida, árabo-românica (< lat. mixti arabi). Preferem-se, entretanto, os termos romance andalusino ou romandalusino, que identificam-na enquanto evolução natural do sermo hispanĭcus, falada na região de Alandalus, sem que o seu uso se restringisse aos hispano-godos arabizados, uma vez que, com efeito, este se estendia igualmente a muçulmanos e a judeus (CORRIENTE, 1996, p. 05).
                Os deslocamentos humanos provocados por conflitos étnico-religiosos, quando moçárabes se refugiavam ao norte, junto a seus correligionários, bem como cristãos do norte se aventuravam ao sul, promoveram a difusão de arabismos nos demais romances – posteriormente línguas – peninsulares (CORRIENTE, 1996, p. 06).
                Em virtude do compartilhamento de diferentes momentos de sua sócio-história, o espanhol e o português têm em comum parte do seu vocabulário, aí inclusos os arabismos. Os arabismos compartilhados pelo espanhol e pelo português são os ibéricos medievais, uma vez que o português europeu adquirirá novos arabismos, em virtude da expansão ultramarina dos seus domínios políticos, na África e nas “Índias” (Oriente), a partir do século XVI. Mais adiante ainda, a partir de fins do século XVIII, mas sobretudo ao longo do século XIX, a variedade americana da língua portuguesa terá o seu léxico enriquecido com a contribuição de arabismos africanos, introduzidos no Brasil por intermédio de línguas africanas faladas por escravos islamizados oriundos do Oeste-Africano (região entre o Senegal e a Nigéria, hoje) e, mais recentemente, pelo árabe dos imigrantes sírio-libaneses, palestinos e de outras procedências (Iraque e Afeganistão, por exemplo).
                Os arabismos ibéricos medievais são de antiga integração nos sistemas lexicais dos romances ibéricos/línguas peninsulares e sua completa adaptação aos sistemas fonológico e morfológico destas muitas vezes impossibilitam a percepção de sua origem médio-oriental.
                Elcock (apud ELIA, 1974, p. 109) estima que os arabismos ibero-românicos somassem cerca de 4.000 itens lexicais, cifra que Lapesa (1991, p. 97) apresenta para a língua espanhola hoje. Piel (1989, p. 10) afirma que 8% do léxico espanhol é de origem árabe.
               
3. METODOLOGIA
Para analisar a existência de cognatos portugueses dos arabismos documentados no livro didático para ensino de espanhol como língua estrangeira Pasaporte 1A (ARAGÓN; GILL; BARQUERO, 2009), procedeu-se ao levantamento dos termos tanto no livro texto como no caderno de exercícios, unidade por unidade.
Confirmou-se a origem árabe do vocabulário levantado no Diccionario de Arabismos y Voces Afines en Iberorromance (CORRIENTE, 2003), o qual apresenta, ao final dos verbetes, cognatos intrarromânicos dos termos dicionarizados. Buscaram-se, em seguida, os cognatos portugueses no Lexico Português de Origem Árabe: Subsídios para Estudos de Filologia (VARGENS, 2007) e na versão eletrônica do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2001).
                Levantaram-se no corpus arabismos aqui apresentados em ordem alfabética, em verbetes que trazem o vocábulo espanhol em letras maiúsculas e seu significado, se inexistente em português, seu cognato português em letras maiúsculas com seu significado, se diferente do significado em espanhol. Apresentam-se, eventualmente, comentários em nota de rodapé.

4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
                Os arabismos encontrados no livro texto de no caderno de exercícios do livro didático Pasaporte 1A (ARAGÓN; GILL; BARQUERO, 2009) são:

ACEITE – AZEITE.
ACEITUNA – AZEITONA.
AJEDREZ – XADREZ.
ALBÓNDIGAS – ALMÔNDEGAS.
ALCÁZAR – ALCÁCER.
ALCACHOFAS – ALCACHOFRA.
ALMACÉN – ARMAZÉM.
AHORRADOR ‘ econômico, poupador’.[2]
ARRABAL – ARRABALDE ou ARREBALDE.
ARROZ – ARROZ.
ATÚN – ATUM.
AZAFATA  (arc.) ‘aia’; (mod.) ‘comissária de bordo’ – AÇAFATA (arc.) ‘aia’.
AZAFRÁN – AÇAFRÃO.
AZÚCAR – AÇÚCAR.
BARRIO – BAIRRO.
CAFÉ – CAFÉ.
CAFETERÍA – CAFETERIA.
CERO – ZERO.
HASTA – ATÉ.
GAZAPO ‘embuste, mentira’.
GAZPACHO ‘salada de verduras trituradas’.[3]
GUITARRA – GUITARRA[4].
JARRA – JARRA.
JIRAFA – GIRAFA.
LIMÓN – LIMÃO.
MEDINA – MEDINA.
MEZQUITA – MESQUITA.
NARANJA – LARANJA.
QUIOSCO – QUIOSQUE.
YOGUR – IOGURTE.
ZANAHORIA – CENOURA.
ZAPATERÍA – ZAPATARIA.
ZAPATO – SAPATO.
ZUMO – SUMO.

                Os arabismos documentados no livro texto e no caderno de exercícios da obra didática Pasaporte 1A (ARAGÓN; GILL; BARQUERO, 2009) somam 34 itens lexicais, 30 deles com cognatos portugueses de igual valor semântico e com semelhança fonética.
Apenas outros 04 itens demandam alguma consideração para que um falante de português os empregue adequadamente: ahorrador, embora compartilhe a raiz com outras formas portuguesas (como forro), não encontra um cognato com o sentido de ‘poupador’ em português; azafata, no sentido de ‘ comissária de bordo’, não é expresso pelo cognato açafata, ‘fidalga a serviço de damas da família real’ (HOUAISS, 2001) e cuja obsolescência é percebida no verbete do Léxico Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007, p. 83), com verbos no pretérito imperfeito e remissão a documento de meados do século XVIII.
Dois vocábulos, entretanto, não encontram cognatos portugueses: gazapo e gazpacho.
Assim, distribuem-se os arabismos espanhois em aqueles com igual valor semântico, com uso distinto e sem cognatos em português, conforme ilustra a tabela 01 a seguir.

TABELA 01 – Arabismos espanhois e cognatos portugueses.

ARABISMOS
ESPANHOIS
ITENS
LEXICAIS
NÚMERO DE
ITENS LEXICAIS
PERCENTUAL




COM COGNATOS
PORTUGUESES D
 IGUAL SENTIDO




COM COGNATOS
PORTUGUESES
SEM EQUIVALÊNCIA
DE SENTIDO


SEM COGNATOS
PORTUGUESES


Aceite, aceituna,  etc.







Ahorrador
Azafata






Gazapa
Gazpacho

30






02






02
88,2






5,9







5,9
Total
     ---
34
100

                O percentual elevado de cognatos com semelhança fônica e igual sentido (88,2%) atesta a sócio-história compartilhada pelos falares românicos do domínio linguístico ibérico, mormente os idiomas aqui representados.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a questão norteadora deste estudo, se há cognatos portugueses dos arabismos espanhóis documentados no livro Pasaporte 1A, a análise dos dados apenas expostos permitem-nos dizer que sim, pois 30 dos 34 itens lexicais levantados têm um cognato em português, o que corresponde a 88,2% do total.
Quanto à hipótese testada, de que há arabismos portugueses, cognatos dos arabismos espanhóis encontrados no livro didático Pasaporte 1A, cujo uso foi preterido por sinônimos de origem diversa, podemos dizer ser verdadeira para 5,9% dos cognatos portugueses: o paradigma semântico de forro, alforria, aforriar, etc. não se relaciona, em português, com o conceito de ‘poupar’, ‘ economizar’, ainda que juntar economias permitisse a escravos a compra da sua liberdade, de modo que se usa o termo de origem latina poupador para expressar a ideia de ‘pessoa que guarda dinheiro’; tampouco o arabismos português açafata sofreu expansão semântica, sendo preterido, na designação da ‘comissária de bordo’, por aeromoça , híbrido de forma grega (aero-) e forma de origem obscura (moça) ou pela perífrase descritiva da sua função (comissária de bordo).


REFERÊNCIAS
ARAGÓN, M. C.; GILL, Ó. C.; BARQUERO, B. L. Pasaporte 1A. Madrid: EDELSA, 2009.
CORRIENTE, F. Diccionario de arabismos y voces afines en iberorromance. 2. ed. ampl. Madrid: Gredos, 2003. [Biblioteca Románica Hispánica, Fundada por Dámaso Alonso, Diccionarios, 22]
CORRIENTE, F. Novedades en le estudio de los arabismos en iberorromance. Revista Española de Lingüística, 26, 1, p. 1-13, 1996.
ELIA, S. Preparação à linguística românica. 1974.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0.10. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 1 CD-ROM.
ILARI, R. Introdução à linguística românica. São Paulo: Ática, 1999.
THORAVAL, Y. Diccionario de civilización musulmana. Barcelona: Larousse Planeta, 1996.
VARGENS, J. B. de M. Léxico português de origem árabe: subsídios para os estudos de filologia. Rio Bonito: Almádena, 2007.
VASCONCELOS, C. M. de. Lições de filologia portuguesa. Lisboa: Revista de Portugal, 1956.


[1] Comunicação apresentada na VIII Jornada de Literaturas e Culturas Ibéricas da UFPI, em maio de 2012.
[2] Corriente (2003, p. 165) correlaciona o vocábulo espanhol ahorrar com as formas portuguesas aforrar e aforramento, a que podemos acrescentar forro e alforria. Não discute, entretanto, a evolução semântica a partir do étimo árabe andalusino (al)húrr < clássico hurr ‘livre’.
[3] De acordo com Corriente (2003, p. 332), trata-se antes de um vocábulo romandalusino, gazp(el)áčo < lat. gāzŏphylācĭum < gr. gazophylákion ‘escova (de igreja)’, designação metaforicamente atribuída à caixa em que se guardavam esmolas, porque nela os fieis colocavam moedas de baixo valor e até migalhas de pão. A metáfora toma por base a mistura encontrada nas caixinhas de esmola.
[4] Hoauiss (2001) informa serem violão e guitarra sinônimos em português, sendo que  guitarra < ár. kītâra < gr. kithára.

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Apresentação

Este blog foi criado para compartilhar informações acerca das conseqüências do contato entre as línguas árabe e portuguesa verificado em 03 contextos específicos: a Península Ibérica medieval, o Brasil escravagista e o Brasil da imigração.
A este tema se dedica a autora deste 1992, quando se apaixonou pelo assunto ao preparar o trabalho de conclusão da disciplina Filologia Românica II (sobre o domínio lingüístico ibérico) na graduação em Letras na Universidade Federal da Bahia.
O referido trabalho, sobre o vocábulo azulejo, descortinou um mundo aparentemente perdido, europeu e medieval, mas que, em verdade, continua vivo no Português Brasileiro, nos arabismos transplantados com o Português Europeu, aos quais se juntaram outros, adquiridos já na Terra Brasilis, por meio de escravos islamizados e de imigrantes arabófonos que ainda hoje chegam ao nosso país.
Os arabismos do Português Brasileiro requerem investigação pautada na etnolingüística e na sociolingüística do contato intercomunitário, complementando o que a literatura especializada já documenta, mas que se restringe aos arabismos ibéricos, mencionando, quando muito, o influxo lexical da migração sírio-libanesa no Brasil.