ARABISMOS
DO PASAPORTE 1A:
EXCLUSIVAMENTE
ESPANHÓIS OU TAMBÉM PORTUGUESES?[1]
1. INTRODUÇÃO
Esta comunicação tem
por objeto arabismos ibéricos documentados no livro didático Pasaporte 1A (ARAGÓN; GILL; BARQUERO,
2009), utilizado nos dois primeiros semestres do Curso de Extensão em Língua
Espanhola da Universidade Federal do Piauí. Tem como objetivo conhecer
arabismos espanhóis que integram o vocabulário básico da língua e a existência
de cognatos portugueses.
Busca responder à
questão: “Há cognatos portugueses dos arabismos espanhóis documentados no livro
Pasaporte 1A?” Consideram-se
arabismos vocábulos que têm origem na língua de Maomé. A hipótese testada é a
de que há arabismos portugueses, cognatos dos arabismos espanhóis encontrados
no livro didático Pasaporte 1A, cujo
uso foi preterido por sinônimos de origem diversa.
Corroborou-se a origem
árabe dos termos espanhóis no Diccionario
de Arabismos y Voces Afines en Iberorromance (CORRIENTE, 2003), buscando-se
os cognatos portugueses também na
versão eletrônica do Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2001) e no Léxico Português de Origem Árabe
(VARGENS, 2007).
Os arabismos espanhois são
apresentados segundo ordenamento alfabético em verbetes que trazem a forma
documentada no Pasaporte 1A – livro
texto e livro de exercícios – e o cognato português, quando há, eventualmente
seguidos de comentários.
2. ARABISMOS IBÉRICOS: HERANÇA DE UMA
SÓCIO-HISTÓRIA COMPARTILHADA
As
línguas peninsulares têm, na constituição do seu sistema lexical, um componente
particular que as diferencia dos demais idiomas românicos: a grande contribuição
da língua corânica, sua 2ª fonte de empréstimos vocabulares, o que a coloca atrás
apenas da língua latina, sobretudo no que respeita ao espanhol e ao português
(VASCONCELOS, 1953, p. 333).
A
própria disposição dos atuais domínios linguísticos peninsulares resulta do
processo de retomada aos árabes dos territórios por eles ocupados ao longo de
boa parte da Idade Média ibérica, no que se conhece por Reconquista, quando os reinos cristãos, estão encolhidos nas
montanhas nortenhas, se expandem verticalmente em direção ao sul, legando à
Península Ibérica três largas faixas nas quais se falam, da esquerda para a
direita, o português, o espanhol e o catalão (ILARI, 1998, p. 170).
Mas
nem sempre foi assim. Conforme já se assinalou, a Península Ibérica conheceu
uma divisão pautada na religião professada pelos seus habitantes: a Espanha,
cristã, ao norte e Alandalus, muçulmano, ao sul. O termo Espanha (< lat. Hispanĭa),
então, designava tão só as regiões ibéricas anteriormente integrantes da Hispanĭa Romana. Já Alandalus constituía uma entidade política arábigo-islâmica cuja
história esteve em sua maior parte estreitamente ligada à política
norte-africana (THORAVAL, 1996, p. 30; 117-121).
Uma
parte da população cristã de Alandalus acabou por arabizar-se em vários
aspectos, a exceção do religioso: na vestimenta, nas diversões, na alimentação.
Sua língua românica, com efeito, a par de se enriquecer com inúmeros arabismos,
passou a ser grafada com caracteres árabes. Sua língua é equivocadamente dita moçárabe, designação atribuída aos seus
falantes, por indicar-lhes sua participação em cultura híbrida, árabo-românica
(< lat. mixti arabi). Preferem-se,
entretanto, os termos romance andalusino
ou romandalusino, que identificam-na
enquanto evolução natural do sermo hispanĭcus,
falada na região de Alandalus, sem que o seu uso se restringisse aos
hispano-godos arabizados, uma vez que, com efeito, este se estendia igualmente a
muçulmanos e a judeus (CORRIENTE, 1996, p. 05).
Os
deslocamentos humanos provocados por conflitos étnico-religiosos, quando
moçárabes se refugiavam ao norte, junto a seus correligionários, bem como
cristãos do norte se aventuravam ao sul, promoveram a difusão de arabismos nos
demais romances – posteriormente línguas – peninsulares (CORRIENTE, 1996, p.
06).
Em
virtude do compartilhamento de diferentes momentos de sua sócio-história, o
espanhol e o português têm em comum parte do seu vocabulário, aí inclusos os
arabismos. Os arabismos compartilhados pelo espanhol e pelo português são os
ibéricos medievais, uma vez que o português europeu adquirirá novos arabismos,
em virtude da expansão ultramarina dos seus domínios políticos, na África e nas
“Índias” (Oriente), a partir do século XVI. Mais adiante ainda, a partir de
fins do século XVIII, mas sobretudo ao longo do século XIX, a variedade
americana da língua portuguesa terá o seu léxico enriquecido com a contribuição
de arabismos africanos, introduzidos no Brasil por intermédio de línguas
africanas faladas por escravos islamizados oriundos do Oeste-Africano (região
entre o Senegal e a Nigéria, hoje) e, mais recentemente, pelo árabe dos
imigrantes sírio-libaneses, palestinos e de outras procedências (Iraque e
Afeganistão, por exemplo).
Os
arabismos ibéricos medievais são de antiga integração nos sistemas lexicais dos
romances ibéricos/línguas peninsulares e sua completa adaptação aos sistemas
fonológico e morfológico destas muitas vezes impossibilitam a percepção de sua
origem médio-oriental.
Elcock
(apud ELIA, 1974, p. 109) estima que os arabismos ibero-românicos somassem
cerca de 4.000 itens lexicais, cifra que Lapesa (1991, p. 97) apresenta para a
língua espanhola hoje. Piel (1989, p. 10) afirma que 8% do léxico espanhol é de
origem árabe.
3. METODOLOGIA
Para analisar a existência
de cognatos portugueses dos arabismos documentados no livro didático para
ensino de espanhol como língua estrangeira Pasaporte
1A (ARAGÓN; GILL; BARQUERO, 2009), procedeu-se ao levantamento dos termos
tanto no livro texto como no caderno de exercícios, unidade por unidade.
Confirmou-se a origem
árabe do vocabulário levantado no Diccionario
de Arabismos y Voces Afines en Iberorromance (CORRIENTE, 2003), o qual
apresenta, ao final dos verbetes, cognatos intrarromânicos dos termos
dicionarizados. Buscaram-se, em seguida, os cognatos portugueses no Lexico Português de Origem Árabe: Subsídios
para Estudos de Filologia (VARGENS, 2007) e na versão eletrônica do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
(HOUAISS; VILLAR, 2001).
Levantaram-se
no corpus arabismos aqui apresentados
em ordem alfabética, em verbetes que trazem o vocábulo espanhol em letras
maiúsculas e seu significado, se inexistente em português, seu cognato
português em letras maiúsculas com seu significado, se diferente do significado
em espanhol. Apresentam-se, eventualmente, comentários em nota de rodapé.
4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Os
arabismos encontrados no livro texto de no caderno de exercícios do livro
didático Pasaporte 1A (ARAGÓN; GILL;
BARQUERO, 2009) são:
ACEITE – AZEITE.
ACEITUNA – AZEITONA.
AJEDREZ – XADREZ.
ALBÓNDIGAS – ALMÔNDEGAS.
ALCÁZAR – ALCÁCER.
ALCACHOFAS – ALCACHOFRA.
ALMACÉN – ARMAZÉM.
AHORRADOR ‘ econômico, poupador’.[2]
ARRABAL – ARRABALDE ou ARREBALDE.
ARROZ – ARROZ.
ATÚN – ATUM.
AZAFATA
(arc.) ‘aia’; (mod.) ‘comissária de bordo’ – AÇAFATA (arc.) ‘aia’.
AZAFRÁN – AÇAFRÃO.
AZÚCAR – AÇÚCAR.
BARRIO – BAIRRO.
CAFÉ – CAFÉ.
CAFETERÍA – CAFETERIA.
CERO – ZERO.
HASTA – ATÉ.
GAZAPO ‘embuste, mentira’.
GAZPACHO ‘salada de verduras trituradas’.[3]
GUITARRA – GUITARRA[4].
JARRA – JARRA.
JIRAFA – GIRAFA.
LIMÓN – LIMÃO.
MEDINA – MEDINA.
MEZQUITA – MESQUITA.
NARANJA – LARANJA.
QUIOSCO – QUIOSQUE.
YOGUR – IOGURTE.
ZANAHORIA – CENOURA.
ZAPATERÍA – ZAPATARIA.
ZAPATO – SAPATO.
ZUMO – SUMO.
Os
arabismos documentados no livro texto e no caderno de exercícios da obra
didática Pasaporte 1A (ARAGÓN; GILL;
BARQUERO, 2009) somam 34 itens lexicais, 30 deles com cognatos portugueses de
igual valor semântico e com semelhança fonética.
Apenas outros 04 itens demandam
alguma consideração para que um falante de português os empregue adequadamente:
ahorrador, embora compartilhe a raiz
com outras formas portuguesas (como forro),
não encontra um cognato com o sentido de ‘poupador’ em português; azafata, no sentido de ‘ comissária de
bordo’, não é expresso pelo cognato açafata,
‘fidalga a serviço de damas da família real’ (HOUAISS, 2001) e cuja
obsolescência é percebida no verbete do Léxico
Português de Origem Árabe (VARGENS, 2007, p. 83), com verbos no pretérito
imperfeito e remissão a documento de meados do século XVIII.
Dois vocábulos,
entretanto, não encontram cognatos portugueses: gazapo e gazpacho.
Assim, distribuem-se os
arabismos espanhois em aqueles com igual valor semântico, com uso distinto e
sem cognatos em português, conforme ilustra a tabela 01 a seguir.
TABELA 01 – Arabismos espanhois e cognatos
portugueses.
ARABISMOS
ESPANHOIS
|
ITENS
LEXICAIS
|
NÚMERO DE
ITENS LEXICAIS
|
PERCENTUAL
|
|
|
|
|
COM COGNATOS
PORTUGUESES D
IGUAL SENTIDO
COM COGNATOS
PORTUGUESES
SEM EQUIVALÊNCIA
DE SENTIDO
SEM COGNATOS
PORTUGUESES
|
Aceite,
aceituna, etc.
Ahorrador
Azafata
Gazapa
Gazpacho
|
30
02
02
|
88,2
5,9
5,9
|
Total
|
---
|
34
|
100
|
O
percentual elevado de cognatos com semelhança fônica e igual sentido (88,2%)
atesta a sócio-história compartilhada pelos falares românicos do domínio
linguístico ibérico, mormente os idiomas aqui representados.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a questão
norteadora deste estudo, se há cognatos portugueses dos arabismos espanhóis
documentados no livro Pasaporte 1A, a
análise dos dados apenas expostos permitem-nos dizer que sim, pois 30 dos 34
itens lexicais levantados têm um cognato em português, o que corresponde a
88,2% do total.
Quanto à hipótese
testada, de que há arabismos portugueses, cognatos dos arabismos espanhóis
encontrados no livro didático Pasaporte
1A, cujo uso foi preterido por sinônimos de origem diversa, podemos dizer
ser verdadeira para 5,9% dos cognatos portugueses: o paradigma semântico de forro, alforria, aforriar, etc. não se
relaciona, em português, com o conceito de ‘poupar’, ‘ economizar’, ainda que
juntar economias permitisse a escravos a compra da sua liberdade, de modo que
se usa o termo de origem latina poupador
para expressar a ideia de ‘pessoa que guarda dinheiro’; tampouco o arabismos
português açafata sofreu expansão
semântica, sendo preterido, na designação da ‘comissária de bordo’, por aeromoça , híbrido de forma grega (aero-) e forma de origem obscura (moça) ou pela perífrase descritiva da
sua função (comissária de bordo).
REFERÊNCIAS
ARAGÓN, M. C.; GILL, Ó. C.; BARQUERO, B.
L. Pasaporte 1A. Madrid: EDELSA,
2009.
CORRIENTE, F. Diccionario de arabismos
y voces afines en iberorromance. 2. ed. ampl. Madrid: Gredos, 2003. [Biblioteca Románica Hispánica, Fundada por Dámaso Alonso, Diccionarios, 22]
CORRIENTE, F. Novedades en le estudio de los arabismos en iberorromance. Revista Española de Lingüística ,
26, 1, p. 1-13, 1996.
ELIA, S. Preparação à linguística românica. 1974.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Versão 1.0.10. Rio de Janeiro : Objetiva ,
2006. 1 CD-ROM.
ILARI, R. Introdução à linguística românica. São Paulo: Ática, 1999.
THORAVAL,
Y. Diccionario de civilización musulmana. Barcelona: Larousse Planeta , 1996.
VASCONCELOS,
C. M. de. Lições de filologia portuguesa. Lisboa: Revista
de Portugal, 1956.
[1] Comunicação apresentada na VIII Jornada
de Literaturas e Culturas Ibéricas da UFPI, em maio de 2012.
[2] Corriente (2003, p. 165)
correlaciona o vocábulo espanhol ahorrar com as formas portuguesas aforrar e
aforramento, a que podemos acrescentar forro e alforria. Não discute,
entretanto, a evolução semântica a partir do étimo árabe andalusino (al)húrr < clássico hurr ‘livre’.
[3] De acordo com Corriente (2003,
p. 332), trata-se antes de um vocábulo romandalusino, gazp(el)áčo < lat. gāzŏphylācĭum
< gr. gazophylákion ‘escova (de
igreja)’, designação metaforicamente atribuída à caixa em que se guardavam
esmolas, porque nela os fieis colocavam moedas de baixo valor e até migalhas de
pão. A metáfora toma por base a mistura encontrada nas caixinhas de esmola.
[4] Hoauiss (2001) informa serem violão e guitarra sinônimos em português, sendo que guitarra < ár. kītâra < gr. kithára.
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