A FILOLOGIA ÁRABO-ROMÂNICA E A ROMANIA
ARABICA NO BRASIL
Designa-se Filologia
Árabe-Românica a ciência da Romania
Arábica, isto é, o ramo da Filologia Românica que tem por objeto as consequências
do contato verificado entre a língua árabe e diferentes romances e,
posteriormente, entre aquela e línguas românicas.
O loco de contato é a Romania Arabica, espaço linguístico-cultural
compartilhado por comunidades de língua materna diversa, geralmente arabófonas
e culturalmente arábico-islâmicas, de um lado; de outro, falantes de neolatim e
cristãs (CORRIENTE, 2006, p. 81-82).
É difícil estabelecer
limites espaço-temporais para a Romania
Arabica, dado que o contato entre o árabe e línguas novilatinas não se dá
exclusivamente em solo ibérico, verificando-se também no Norte da África e em
outras regiões da Europa Ocidental, bem como se reflete ainda hoje nas línguas
espanhola e portuguesa e nas variedades européia e americana destas (CORRIENTE,
2006, p. 82-83). Há de se considerar, ainda, episódios contemporâneos da
política internacional concernentes ao Oriente Médio e à África, dos quais
resultam migrações e novos contatos entre arabófonos e falantes de línguas
neolatinas, inclusive do português brasileiro.
Tradicionalmente, a
literatura especializada aborda quase exclusivamente as consequências do
contato do árabe com romances ou neolatins ibéricos, verificados ainda na Idade
Média, fato de que resultam temas elencados como importantes na pesquisa em
Filologia Árabe-Românica, a exemplo de:
a) influência do árabe
e do berbere nos romances peninsulares;
b) influência do
romance hispânico nos falares árabes andalusinos;
c) surgimento do
romandalusino (conjunto de dialetos do romance meridional, equivocadamente dito
moçárabe);
d) uso eventual do
romance por poetas arabófonos e hebreus em harajāt
de muhwaššahāt;
e) uso do romance
hispânico e de línguas novilatinas por mudéjares e mouriscos;
f) atavismos culturais
andalusinos na civilização hispânica na Europa e nas Américas (CORRIENTE, 2006,
p. 83).
No
que concerne a contatos luso-árabes mais recentes no Brasil e a importação de
material léxico árabe pelo português brasileiro, enfatiza-se a necessidade de
se investigarem, na perspectiva da sociolinguística, influxos da língua árabe
em variedades diatópicas do português brasileiro decorrentes da integração de
imigrantes muçulmanos à nossa sociedade, tema inexplorado pela Linguística
brasileira (MARANHÃO, 2010, p. 7).
Considerando-se
exclusivamente o sistema lexical do português brasileiro é preciso investigar,
por exemplo:
a) a
sobrevivência de arabismos introduzidos por afro-muçulmanos em variedades
diatópicas e diacrônicas de áreas nas quais estiveram presentes, como a Bahia;
b) a
sua ocorrência em diferentes gêneros textuais, em documentos produzidos por
e/ou sobre afro-muçulmanos, ontem e hoje, inclusive em textos lítero-musicais;
c) o
influxo da imigração muçulmana contemporânea em variedades diatópicas do
português brasileiro de áreas em que a presença muçulmana é quantitativamente
importante, por meio de pesquisa de campo sociolinguística;
d) história
externa do contato luso-árabe, com descrição das relações estabelecidas pelas
línguas em contato (prestígio, funções, graus de domínio, correlação da
migração em rede e da diglossia no âmbito do próprio árabe e suas consequência
no processo de aquisição e uso da língua portuguesa);
e) relações
linguísticas e literárias da literatura de cordel com a literatura popular,
oral, ibérica e a tese de origem arábica desta;
f) preservação
de arabismos herdados do português europeu em variedades diatópicas,
distráticas e diacrônicas do português brasileiro;
g) a
recente introdução de estrangeirismos de origem árabe na língua portuguesa por
meio da mídia e da literatura estrangeira médio-oriental.
Federico Corriente,
principal investigador dos arabismos ibéricos na atualidade e autor do Diccionario de arabismos y de vocês afines
em iberorromance, publicado em 1999 e reeditado, em versão ampliada, em
2003, bem como de estudos sobre o árabe andalusino, enfatiza a precária
formação dos filólogos que abraçam a empreitada de investigar arabismos, pois,
em geral, desconhecem a língua árabe. Assim, propõe, para o estudo das consequências
da interferência romano-árabe na Península Ibérica, um aprimoramento
metodológico, a partir do estabelecimento de grupos de pesquisa que envolvam especialistas
das várias áreas concernentes à investigação, quais sejam arabistas,
romanistas, berberólogos, iranistas, etc., reunindo conhecimentos sobre
variedades diversas do ibero-romance e da língua árabe e das realidades
culturais da Europa Ocidental e do mundo islâmico. Por outro lado, faz-se
necessário o abandono de posicionamentos ideológicos essencialistas, os quais
ou desvalorizam a contribuição cultural islâmica no Ocidente ou ignoram as
raízes hispânicas da cultura andalusina (CORRIENTE, 2006, p. 90-91).
Paralelamente, a
investigação do influxo árabe no léxico do português brasileiro demanda a
constituição de grupos complexos de pesquisa, envolvendo linguistas,
historiadores, sociólogos, antropólogos, etc. que possam descrever as relações
sócio-históricas estabelecidas entre as diferentes comunidades em contato e as
suas consequências linguístico-culturais.
2. HERANÇA LINGUÍSTICO-CULTURAL
ÁRABE NO BRASIL
Câmara
Cascudo, em ensaio etnográfico sobre a herança cultural africana (moura) e
médio-oriental (árabe) introduzida no Brasil pelo colonizador português, ou
adquirida no Brasil por meio de sudaneses e sírio-libaneses, identifica-a em
todo o território nacional, em vários aspectos insuspeitos, senão vejamos:
No
que respeita à vida cotidiana, cita o torço, o barrete e a alpercata, na
indumentária (CASCUDO, 2001, p. 17-18, 20, 27); na alimentação, a doçaria
pautada em gemas de ovos, farinha de trigo e açúcar, a que equivocadamente
creditamos origem portuguesa, bem como o cuscuz e o arroz doce (CASCUDO, 2001,
p. 25); na equitação, o amor ao cavalo, herança árabe, o modo mouro de
cavalgá-lo, valendo-se do estribo curto de caçamba, da espora de rosetas e do
chicote de couro, o acicatar os animais nas espáduas, as cavalgatas noturnas
para o furto de animais encontrados no campo sem vigilantes (CASCUDO, 2001, p.
25-26); o aboio sobrevivente no Nordeste, “documento impressionante do canto
oriental”, “Longo e assombroso testemunho da legítima melodia em neumas,
recordando a prece da tarde, caindo do alto dos minaretes” (CASCUDO, 2001, p.
25); o tirar a sorte pela escolha de varetas ou palhas de tamanhos diversos,
perdendo aquele que tirar a peça mais curta, jogo pré-islâmico, “reminiscência
da Caldéia” (CASCUDO, 2001, p. 23).
Dentre
os costumes, a reclusão feminina, cujo convívio social com o sexo oposto era
restrito àqueles intimamente aparentados, como pai, irmãos, padrinho e esposo,
tradição comum no interior de todo o Brasil, no século XIX (CASCUDO, 2001, p.
23-24); no sertão, a recepção, fora do corpo da casa (no alpendre, por
exemplo), das “visitas de passagem ou de negócios rápidos” (CASCUDO, 2001, p.
30); o hábito de beijar um documento oficial e de colocá-lo sobre a cabeça,
herança da etiqueta oriental significando o seu irrestrito acato, de cuja observância
no Brasil há inúmeros testemunhos (CASCUDO, 2001, p. 21-22); o beijar a própria
mão, ato do cerimonial popular brasileiro, indicando “homenagem ao interlocutor
ou carinhosa saudação ao distante” (CASCUDO, 2001, p.29-30); a saudação com
todo o braço direito, ou com ambos os braços, nas despedidas (CASCUDO, 2001, p.
30); o gesto para chamar alguém, mexendo os dedos para cima, com a mão em
supinação (CASCUDO, 2001, p. 29).
E,
ainda, o sentar-se sobre as pernas dobradas, o servir uma refeição diretamente
no chão limpo, dispondo os pratos “diretamente no solo nu (...), os convivas
sentados em terra”, bebendo apenas depois de comer (CASCUDO, 2001, p. 21); a
imprecisão com que se informa uma distância a ser percorrida, verbalizada no “-
É ali!”, ao que acompanham o estender dos lábios e o erguer o queixo (CASCUDO,
2001, p. 29); o entortar a boca, indicando desdém, bem como o morder os dedos,
expressando “cólera, desacordo, protesto”
(CASCUDO, 2001, p. 30-31); as vinganças resultantes do dever sagrado de
vingar o assassinato de membros da família, verificadas nas inimizades entre
famílias do sertão nordestino (CASCUDO, 2001, p. 30); a superstição, combatida
por Maomé já nos primórdios do século VII, de não entrar e sair por uma mesma
porta (CASCUDO, 2001, p. 28).
O
rogar pragas, segundo Câmara Cascudo, também constitui herança moura, em suas
palavras “a grande arma, instintiva e natural, do mouro sem defesa” (CASCUDO,
2001, p. 36); os vocativos familiares “homem de Deus”, “criatura de Deus” e
filho de Deus”, as duas primeiras “fórmulas realmente muçulmanas, relativas ao
espírito associativo da fraternidade sobrenatural”, a terceira “diametralmente
oposta à teologia do Islã”, segundo a qual a divindade não pode gerar
descendentes (CASCUDO, 2001, p. 37); as expressões “só Deus sabe” e “sabe
Deus”, registrando a onipotência divina (CASCUDO, 2001, p. 38); as numerosas
invocações do tipo “pelo poder de Deus”, “pela graça de Deus”, “Deus me ensinou
o que eu não sabia”, “Deus que tudo sabe”, “Deus que é mestre”, “a Deus querer”
e “Deus querendo”, oriundas do formulário muçulmano e encontradas no Corão
(CASCUDO, 2001, p. 34, assim como a associação do paraíso à “sombra e água
fresca”, ambas citadas no Corão como características do Paraíso islâmico
(CASCUDO, 2001, p.38).
No
folclore, as mães-d’água, as quais, além do canto sedutor, enriquecem quem as
desencanta, numa convergência com as mouras-encantadas, que tinham esse
atributo (CASCUDO, 2001, p. 18-19); contos populares das Mil e Uma Noites e
episódios de outras fontes clássicas teriam sido introduzidas em Portugal e
trazidas posteriormente ao Brasil, bem como estórias “ligadas aos ciclos d’alta
antiguidade arábica”, pela escravaria originária da África Ocidental (CASCUDO,
2001, p. 28).
Na
arquitetura, reixas, muxarabiês, molduras de janelas, portas interiores. Do
mobiliário, os sofás amplos e baixos, escabelos, estrados e palaquins (CASCUDO,
2001, p. 25). Na música, o uso de instrumentos orientais como o adufe (pandeiro
redondo ou triangular) e o tamborim, aquele “percutido na cidade do Salvador no
fim do século XVI e sempre por mão feminina” (CASCUDO, 2001, p. 27); a
entonação lastimosa, com modulação lenta e doce, os finais em rallentados, o timbre nasal do canto
sertanejo do passado, com ausência de contracanto, levemente feito por
instrumentos, nos intervalos do canto, herança moura no modo de cantar
(CASCUDO, 2001, p. 35). Na dança, o sarambeque, “dança africana aclimatada em
Minas Gerais” (GALLET apud CASCUDO, 2001, p. 20), variante da sarabanda berbere
(CASCUDO, 2001, p. 20).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do
quanto se expôs, evidencia-se ainda encerrar a Romania Arabica mistérios que hão de render à Filologia Árabo-Românica
diversos trabalhos acadêmicos.
Concluiu-se
pela corroboração da hipótese testada, de que aos temas da Filologia
Árabo-Românica, em geral buscados na Península Ibérica medieval, correspondem
outros, oriundos da história contemporânea do Brasil e da constituição do
léxico do português brasileiro, uma vez que:
a)
a presença de elementos étnicos árabes ou arabizados, muçulmanos ou não, no
território brasileiro se verifica sistematicamente desde fins do século XVIII;
b)
introduzidos no Brasil pelo colonizador português ou, posteriormente, por
escravos islamizados e pela imigração árabe e/ou muçulmana, a cultura
brasileira encerra características cujas origens remotas estão no Oriente
Médio;
c)
a literatura especializada em Filologia e Linguística não contempla o contato
luso-árabe decorrente da imigração muçulmana ora em curso no Brasil, carente,
ainda, de investigações;
d)
a amplitude temática verificada, no que concerne ao contato luso-árabe no
Brasil, demanda a constituição de grupos heterogêneos de pesquisa, que
contemplem os aspectos sócio-históricos, político-econômicos e
linguístico-culturais do referido contato.
Retomando, portanto, a questão
norteadora deste estudo, a saber, “Aplica-se a Filologia Árabo-Românica ao
contexto sócio-histórico e linguístico do Português Brasileiro?”, podemos
responder afirmativamente, cabendo tanto uma revisão da literatura sobre o
contato luso-árabe no Brasil, a partir da Sociolingüística do contato
intercomunitário, quanto propriamente Lingüística, com a revisão dos termos
atribuídos à presença afro-muçulmana no Brasil escravagista e à integração de
imigrantes árabes e/ou muçulmanos à sociedade brasileira, bem como com a
investigação do registro lexical em documentos relacionados a tais presenças no
Brasil e à pesquisa sociolingüística/dialetológica nos locais de migração
muçulmana, mormente nas regiões sudeste e sul do país.
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