domingo, 4 de novembro de 2012


A FILOLOGIA ÁRABO-ROMÂNICA E A ROMANIA ARABICA NO BRASIL

1. A FILOLOGIA ÁRABO-ROMÂNICA
Designa-se Filologia Árabe-Românica a ciência da Romania Arábica, isto é, o ramo da Filologia Românica que tem por objeto as consequências do contato verificado entre a língua árabe e diferentes romances e, posteriormente, entre aquela e línguas românicas.
O loco de contato é a Romania Arabica, espaço linguístico-cultural compartilhado por comunidades de língua materna diversa, geralmente arabófonas e culturalmente arábico-islâmicas, de um lado; de outro, falantes de neolatim e cristãs (CORRIENTE, 2006, p. 81-82).
É difícil estabelecer limites espaço-temporais para a Romania Arabica, dado que o contato entre o árabe e línguas novilatinas não se dá exclusivamente em solo ibérico, verificando-se também no Norte da África e em outras regiões da Europa Ocidental, bem como se reflete ainda hoje nas línguas espanhola e portuguesa e nas variedades européia e americana destas (CORRIENTE, 2006, p. 82-83). Há de se considerar, ainda, episódios contemporâneos da política internacional concernentes ao Oriente Médio e à África, dos quais resultam migrações e novos contatos entre arabófonos e falantes de línguas neolatinas, inclusive do português brasileiro.
Tradicionalmente, a literatura especializada aborda quase exclusivamente as consequências do contato do árabe com romances ou neolatins ibéricos, verificados ainda na Idade Média, fato de que resultam temas elencados como importantes na pesquisa em Filologia Árabe-Românica, a exemplo de:
a) influência do árabe e do berbere nos romances peninsulares;
b) influência do romance hispânico nos falares árabes andalusinos;
c) surgimento do romandalusino (conjunto de dialetos do romance meridional, equivocadamente dito moçárabe);
d) uso eventual do romance por poetas arabófonos e hebreus em harajāt de muhwaššahāt;
e) uso do romance hispânico e de línguas novilatinas por mudéjares e mouriscos;
f) atavismos culturais andalusinos na civilização hispânica na Europa e nas Américas (CORRIENTE, 2006, p. 83).
            No que concerne a contatos luso-árabes mais recentes no Brasil e a importação de material léxico árabe pelo português brasileiro, enfatiza-se a necessidade de se investigarem, na perspectiva da sociolinguística, influxos da língua árabe em variedades diatópicas do português brasileiro decorrentes da integração de imigrantes muçulmanos à nossa sociedade, tema inexplorado pela Linguística brasileira (MARANHÃO, 2010, p. 7).
            Considerando-se exclusivamente o sistema lexical do português brasileiro é preciso investigar, por exemplo:
a)      a sobrevivência de arabismos introduzidos por afro-muçulmanos em variedades diatópicas e diacrônicas de áreas nas quais estiveram presentes, como a Bahia;
b)      a sua ocorrência em diferentes gêneros textuais, em documentos produzidos por e/ou sobre afro-muçulmanos, ontem e hoje, inclusive em textos lítero-musicais;
c)      o influxo da imigração muçulmana contemporânea em variedades diatópicas do português brasileiro de áreas em que a presença muçulmana é quantitativamente importante, por meio de pesquisa de campo sociolinguística;
d)     história externa do contato luso-árabe, com descrição das relações estabelecidas pelas línguas em contato (prestígio, funções, graus de domínio, correlação da migração em rede e da diglossia no âmbito do próprio árabe e suas consequência no processo de aquisição e uso da língua portuguesa);
e)      relações linguísticas e literárias da literatura de cordel com a literatura popular, oral, ibérica e a tese de origem arábica desta;
f)       preservação de arabismos herdados do português europeu em variedades diatópicas, distráticas e diacrônicas do português brasileiro;
g)      a recente introdução de estrangeirismos de origem árabe na língua portuguesa por meio da mídia e da literatura estrangeira médio-oriental.
Federico Corriente, principal investigador dos arabismos ibéricos na atualidade e autor do Diccionario de arabismos y de vocês afines em iberorromance, publicado em 1999 e reeditado, em versão ampliada, em 2003, bem como de estudos sobre o árabe andalusino, enfatiza a precária formação dos filólogos que abraçam a empreitada de investigar arabismos, pois, em geral, desconhecem a língua árabe. Assim, propõe, para o estudo das consequências da interferência romano-árabe na Península Ibérica, um aprimoramento metodológico, a partir do estabelecimento de grupos de pesquisa que envolvam especialistas das várias áreas concernentes à investigação, quais sejam arabistas, romanistas, berberólogos, iranistas, etc., reunindo conhecimentos sobre variedades diversas do ibero-romance e da língua árabe e das realidades culturais da Europa Ocidental e do mundo islâmico. Por outro lado, faz-se necessário o abandono de posicionamentos ideológicos essencialistas, os quais ou desvalorizam a contribuição cultural islâmica no Ocidente ou ignoram as raízes hispânicas da cultura andalusina (CORRIENTE, 2006, p. 90-91).
Paralelamente, a investigação do influxo árabe no léxico do português brasileiro demanda a constituição de grupos complexos de pesquisa, envolvendo linguistas, historiadores, sociólogos, antropólogos, etc. que possam descrever as relações sócio-históricas estabelecidas entre as diferentes comunidades em contato e as suas consequências linguístico-culturais.



2. HERANÇA LINGUÍSTICO-CULTURAL ÁRABE NO BRASIL
Câmara Cascudo, em ensaio etnográfico sobre a herança cultural africana (moura) e médio-oriental (árabe) introduzida no Brasil pelo colonizador português, ou adquirida no Brasil por meio de sudaneses e sírio-libaneses, identifica-a em todo o território nacional, em vários aspectos insuspeitos, senão vejamos:
No que respeita à vida cotidiana, cita o torço, o barrete e a alpercata, na indumentária (CASCUDO, 2001, p. 17-18, 20, 27); na alimentação, a doçaria pautada em gemas de ovos, farinha de trigo e açúcar, a que equivocadamente creditamos origem portuguesa, bem como o cuscuz e o arroz doce (CASCUDO, 2001, p. 25); na equitação, o amor ao cavalo, herança árabe, o modo mouro de cavalgá-lo, valendo-se do estribo curto de caçamba, da espora de rosetas e do chicote de couro, o acicatar os animais nas espáduas, as cavalgatas noturnas para o furto de animais encontrados no campo sem vigilantes (CASCUDO, 2001, p. 25-26); o aboio sobrevivente no Nordeste, “documento impressionante do canto oriental”, “Longo e assombroso testemunho da legítima melodia em neumas, recordando a prece da tarde, caindo do alto dos minaretes” (CASCUDO, 2001, p. 25); o tirar a sorte pela escolha de varetas ou palhas de tamanhos diversos, perdendo aquele que tirar a peça mais curta, jogo pré-islâmico, “reminiscência da Caldéia” (CASCUDO, 2001, p. 23).
Dentre os costumes, a reclusão feminina, cujo convívio social com o sexo oposto era restrito àqueles intimamente aparentados, como pai, irmãos, padrinho e esposo, tradição comum no interior de todo o Brasil, no século XIX (CASCUDO, 2001, p. 23-24); no sertão, a recepção, fora do corpo da casa (no alpendre, por exemplo), das “visitas de passagem ou de negócios rápidos” (CASCUDO, 2001, p. 30); o hábito de beijar um documento oficial e de colocá-lo sobre a cabeça, herança da etiqueta oriental significando o seu irrestrito acato, de cuja observância no Brasil há inúmeros testemunhos (CASCUDO, 2001, p. 21-22); o beijar a própria mão, ato do cerimonial popular brasileiro, indicando “homenagem ao interlocutor ou carinhosa saudação ao distante” (CASCUDO, 2001, p.29-30); a saudação com todo o braço direito, ou com ambos os braços, nas despedidas (CASCUDO, 2001, p. 30); o gesto para chamar alguém, mexendo os dedos para cima, com a mão em supinação (CASCUDO, 2001, p. 29).
E, ainda, o sentar-se sobre as pernas dobradas, o servir uma refeição diretamente no chão limpo, dispondo os pratos “diretamente no solo nu (...), os convivas sentados em terra”, bebendo apenas depois de comer (CASCUDO, 2001, p. 21); a imprecisão com que se informa uma distância a ser percorrida, verbalizada no “- É ali!”, ao que acompanham o estender dos lábios e o erguer o queixo (CASCUDO, 2001, p. 29); o entortar a boca, indicando desdém, bem como o morder os dedos, expressando “cólera, desacordo, protesto”  (CASCUDO, 2001, p. 30-31); as vinganças resultantes do dever sagrado de vingar o assassinato de membros da família, verificadas nas inimizades entre famílias do sertão nordestino (CASCUDO, 2001, p. 30); a superstição, combatida por Maomé já nos primórdios do século VII, de não entrar e sair por uma mesma porta (CASCUDO, 2001, p. 28).
O rogar pragas, segundo Câmara Cascudo, também constitui herança moura, em suas palavras “a grande arma, instintiva e natural, do mouro sem defesa” (CASCUDO, 2001, p. 36); os vocativos familiares “homem de Deus”, “criatura de Deus” e filho de Deus”, as duas primeiras “fórmulas realmente muçulmanas, relativas ao espírito associativo da fraternidade sobrenatural”, a terceira “diametralmente oposta à teologia do Islã”, segundo a qual a divindade não pode gerar descendentes (CASCUDO, 2001, p. 37); as expressões “só Deus sabe” e “sabe Deus”, registrando a onipotência divina (CASCUDO, 2001, p. 38); as numerosas invocações do tipo “pelo poder de Deus”, “pela graça de Deus”, “Deus me ensinou o que eu não sabia”, “Deus que tudo sabe”, “Deus que é mestre”, “a Deus querer” e “Deus querendo”, oriundas do formulário muçulmano e encontradas no Corão (CASCUDO, 2001, p. 34, assim como a associação do paraíso à “sombra e água fresca”, ambas citadas no Corão como características do Paraíso islâmico (CASCUDO, 2001, p.38).
No folclore, as mães-d’água, as quais, além do canto sedutor, enriquecem quem as desencanta, numa convergência com as mouras-encantadas, que tinham esse atributo (CASCUDO, 2001, p. 18-19); contos populares das Mil e Uma Noites e episódios de outras fontes clássicas teriam sido introduzidas em Portugal e trazidas posteriormente ao Brasil, bem como estórias “ligadas aos ciclos d’alta antiguidade arábica”, pela escravaria originária da África Ocidental (CASCUDO, 2001, p. 28).
Na arquitetura, reixas, muxarabiês, molduras de janelas, portas interiores. Do mobiliário, os sofás amplos e baixos, escabelos, estrados e palaquins (CASCUDO, 2001, p. 25). Na música, o uso de instrumentos orientais como o adufe (pandeiro redondo ou triangular) e o tamborim, aquele “percutido na cidade do Salvador no fim do século XVI e sempre por mão feminina” (CASCUDO, 2001, p. 27); a entonação lastimosa, com modulação lenta e doce, os finais em rallentados, o timbre nasal do canto sertanejo do passado, com ausência de contracanto, levemente feito por instrumentos, nos intervalos do canto, herança moura no modo de cantar (CASCUDO, 2001, p. 35). Na dança, o sarambeque, “dança africana aclimatada em Minas Gerais” (GALLET apud CASCUDO, 2001, p. 20), variante da sarabanda berbere (CASCUDO, 2001, p. 20).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
           
Do quanto se expôs, evidencia-se ainda encerrar a Romania Arabica mistérios que hão de render à Filologia Árabo-Românica diversos trabalhos acadêmicos.
Concluiu-se pela corroboração da hipótese testada, de que aos temas da Filologia Árabo-Românica, em geral buscados na Península Ibérica medieval, correspondem outros, oriundos da história contemporânea do Brasil e da constituição do léxico do português brasileiro, uma vez que:
a) a presença de elementos étnicos árabes ou arabizados, muçulmanos ou não, no território brasileiro se verifica sistematicamente desde fins do século XVIII;
b) introduzidos no Brasil pelo colonizador português ou, posteriormente, por escravos islamizados e pela imigração árabe e/ou muçulmana, a cultura brasileira encerra características cujas origens remotas estão no Oriente Médio;
c) a literatura especializada em Filologia e Linguística não contempla o contato luso-árabe decorrente da imigração muçulmana ora em curso no Brasil, carente, ainda, de investigações;
d) a amplitude temática verificada, no que concerne ao contato luso-árabe no Brasil, demanda a constituição de grupos heterogêneos de pesquisa, que contemplem os aspectos sócio-históricos, político-econômicos e linguístico-culturais do referido contato.
            Retomando, portanto, a questão norteadora deste estudo, a saber, “Aplica-se a Filologia Árabo-Românica ao contexto sócio-histórico e linguístico do Português Brasileiro?”, podemos responder afirmativamente, cabendo tanto uma revisão da literatura sobre o contato luso-árabe no Brasil, a partir da Sociolingüística do contato intercomunitário, quanto propriamente Lingüística, com a revisão dos termos atribuídos à presença afro-muçulmana no Brasil escravagista e à integração de imigrantes árabes e/ou muçulmanos à sociedade brasileira, bem como com a investigação do registro lexical em documentos relacionados a tais presenças no Brasil e à pesquisa sociolingüística/dialetológica nos locais de migração muçulmana, mormente nas regiões sudeste e sul do país.


REFERÊNCIAS

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Apresentação

Este blog foi criado para compartilhar informações acerca das conseqüências do contato entre as línguas árabe e portuguesa verificado em 03 contextos específicos: a Península Ibérica medieval, o Brasil escravagista e o Brasil da imigração.
A este tema se dedica a autora deste 1992, quando se apaixonou pelo assunto ao preparar o trabalho de conclusão da disciplina Filologia Românica II (sobre o domínio lingüístico ibérico) na graduação em Letras na Universidade Federal da Bahia.
O referido trabalho, sobre o vocábulo azulejo, descortinou um mundo aparentemente perdido, europeu e medieval, mas que, em verdade, continua vivo no Português Brasileiro, nos arabismos transplantados com o Português Europeu, aos quais se juntaram outros, adquiridos já na Terra Brasilis, por meio de escravos islamizados e de imigrantes arabófonos que ainda hoje chegam ao nosso país.
Os arabismos do Português Brasileiro requerem investigação pautada na etnolingüística e na sociolingüística do contato intercomunitário, complementando o que a literatura especializada já documenta, mas que se restringe aos arabismos ibéricos, mencionando, quando muito, o influxo lexical da migração sírio-libanesa no Brasil.