sábado, 23 de abril de 2011

A PRESENÇA DE AFRO-MUÇULMANOS, DA LÍNGUA ÁRABE E DE LÍNGUAS AFRICANAS NA BAHIA ESCRAVAGISTA

A literatura brasileira especializada em estudos africanos registra a presença, no Brasil, de escravos oriundos do noroeste da África já nos primórdios do século XVII. Artur Ramos, por exemplo, cita documento de 1607 que fala da presença haussá na Bahia (REICHERT, 1970, p. 115).
Entretanto, a partir das últimas décadas do século XVIII e ao longo do século XIX, essa presença se tornou sistemática. Foi, então, o Sudão Central, região interiorana em relação à Baía do Benin, a procedência de africanos islamizados (haussás, nupes, iorubás, bornos, borgus, etc.) levados como escravos para a Bahia, como conseqüência da jihad promovida, a partir de 1804, pelo xeque Usman dan Fodio, fundador do Califado de Sokoto, de cujas guerras expansionistas resultou o cativeiro de habitantes das áreas próximas à baía do Benin, particularmente no período compreendido entre os anos de 1804 e 1810. A presença de escravos islamizados na Bahia está relacionada, assim, a complexo desdobramento da História da África, em que se misturam religião e política, uma jihad e disputas por expansão territorial (LOVEJOY, 2000, p. 11-12).
Lovejoy (2000, p. 26), a partir da análise de material biográfico de 117 cativos destinados ao trabalho escravo na Bahia, conclui preliminarmente que 41 ou tinham nomes muçulmanos ou é quase certo que o fossem; permitindo a declaração de naturalidade inferir que 12 eram muçulmanos, aos quais talvez se somem outros 04; 37 tinham nomes cristãos e africanos, sem qualquer indício de ligação com o islamismo; 05 tinham nomes cristãos e 03, africanos não-islâmicos.
E afirma:
Embora não se saiba, dentre os escravos com nomes africanos não-muçulmanos, quantos de fato eram islâmicos; nem quantos, entre detentores de nomes africanos e cristãos, também o fossem, é razoável concluir que pelo menos 56% dos centro-sudaneses eram islamizados. É possível que tal porcentagem fosse ainda mais alta (LOVEJOY, 2000, p. 27).

Lovejoy (2000, p. 27) lembra, ainda, que a adoção de nomes muçulmanos por escravos de origem não-muçulmana indica que o processo de conversão iniciado na África tinha continuidade na Bahia. Além disso, não fica descartada a possibilidade de alguns dos cativos de origem iorubá ou nupe com nomes não-muçulmanos africanos serem efetivamente islamizados.
Entre os escravos, a prática do islamismo, diferentemente de outras manifestações religiosas africanas, não se transfigurou numa forma popular, a exemplo do catolicismo, e se verificou secretamente (QUIRING-ZOCHE, 1997, p. 232).
Embora fossem os haussás os africanos mais intensamente islamizados, os iorubás os sobrepunham, e muito, numericamente. Quanto à islamização dos escravos, depoimentos tomados quando da grande revolta malê de 1835 apontam para a sua ocorrência na terra de origem, em geral na infância e em escolas corânicas, com o aprendizado também da língua árabe (REIS, p. 09-10).
Ao deporem sobre o grau de envolvimento com o islamismo, muitos interrogados se reportaram a suas experiências africanas. Alguns disseram abertamente que haviam recebido instrução islâmica na África, possivelmente em escolas corânicas ou madrasas. O nagô Pedro, ao ser perguntado sobre um livro e vários manuscritos em árabe encontrados em seu poder, respondeu: ‘O livro continha rezas de sua terra e os papéis várias doutrinas cuja linguagem e sua ciência ele sabia antes de vir de sua terra.’ Pompeo da Silva, nagô forro, com cerca de 30 anos de idade, ‘perguntado se ele sabia ou entendia das letras arábicas que usavam os Nagôs, disse, que tendo aprendido em sua terra pequenino que agora quase nada se lembrava.’ Antônio, escravo Haussá, pescador, disse que sabia escrever em árabe, mas só escrevia ‘orações segundo o cisma de sua terra’. Ou seja, não escrevia coisas subversivas, políticas, só orações. Acrescentou que ‘quando pequeno em sua terra andava na escola’ (REIS, p. 09).

E ainda,
O escravo nagô Gaspar, preso com grande quantidade de escritos árabes, amuletos, um tessubá (o rosário malê) etc, disse ter sido ele o autor dos escritos, e que aprendera o árabe em sua terra. Ele leu trechos do que havia escrito, embora alegasse não saber traduzir para o português (REIS, p. 09-10).

Os documentos confiscados quando da rebelião de 1835 são manuscritos contendo textos corânicos, orações islâmicas não-corânicas e textos diversos, como amuletos e exercícios de escrita árabe, constituindo, com efeito, esta classificação a adotada por Reichert (1966, 1967, 1968), ao publicar, nos anos 60 do século passado, 03 artigos nos quais os edita, traduz e comenta.
Alguns documentos islâmicos produzidos na Bahia demonstram serem os seus autores mais ou menos familiarizados com a grafia árabe, mas não propriamente com a língua (DOBRONRAVIN, 2004, p. 313). Nikolay Dobronravin analisou um manuscrito localizado em Havre, escrito com caracteres árabes, cujas passagens “fonetizadas” têm características lingüísticas tais que sugerem ser o iorubá a língua principal do seu autor (DOBRONRAVIN, 2004, p. 306, 309). Fragmentos há, entretanto, de difícil identificação, parecendo árabe fonetizado (DOBRONRAVIN, 2004, p. 310, 311); outras, ainda, com grafia incorreta, provavelmente em haussá (DOBRONRAVIN, 2004, p. 311).
Dobronravin (2004, p. 314) analisou também manuscritos do Arquivo Público do Estado da Bahia. Um deles não guarda qualquer relação com o referido levante, constituindo o “primeiro manuscrito com um texto não-árabe significativo e é também o primeiro texto não-religioso até agora identificado entre os papéis malês baianos”. Trata-se de um bilhete endereçado a um malam em virtude da morte de um bebê, cujo pai pede, não se sabe ao certo, condolências ou um amuleto. Este texto, bilíngüe, árabe-haussá, com predominância desta última língua, foi tomado de um africano de origem nupe (tapa). O fragmento em haussá também traz características que denotam a condição de língua estrangeira que essa língua tinha para o autor (DOBRONRAVIN, 2004, p. 314, 315).
Um terceiro manuscrito, do qual há apenas uma reprodução publicada por Reichert, teve a sua interpretação comprometida, quando tomado por árabe. Tomado como bilíngüe, haussá nas passagens antes de difícil interpretação, torna-se compreensível (DOBRONRAVIN, 2004, p.317-318).
Documentos afro-muçulmanos localizados no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, ilustram a utilização do árabe, a par de outras línguas africanas, no Brasil oitocentista. Um livro de orações traz passagens obscuras, provavelmente em árabe fonetizado ou em alguma língua africana (DOBRONRAVIN, 2004, p. 320-321). Um segundo documento, confiscado pela polícia gaúcha na década de 1840, possui uma anotação marginal em haussá (DOBRONRAVIN, 2004, p. 321-322).
Os manuscritos analisados por Dobronravin contrastam com outros documentos, localizados no Arquivo Público do Estado da Bahia, e editados no final dos anos 60 por Reichert, e cujos autores ou compiladores demonstravam conhecimento mais profundo da língua árabe e memorização de várias suras, reproduzidas pelos mesmos sem erros ou com poucos equívocos (DOBRONRAVIN, 2004, p. 313; REICHERT, 1966, 1967, 1968). No dizer de Reichert: “Há textos que revelam um escritor bem educado, e há outros que demonstram o esfôrço fervoroso do estudante que repete certo trecho sagrado por dúzias de vezes” (REICHERT, 1966, p. 169).
Textos islâmicos multilingües da Bahia registram, a par do uso do árabe, a língua haussá, atestando o prestígio desta etnia como “verdadeiramente muçulmana”, em detrimento da iorubá, cujos falantes constituem a maioria dos afro-muçulmanos, denotando, ainda, a importância dos haussás na islamização destes (DOBRONRAVIN, 2004, p. 324).
Quanto ao emprego da língua árabe entre os afro-muçulmanos, no século XIX constituía a principal língua escrita, ao lado do português, sendo usada principalmente no âmbito religioso (registro de amuletos, orações, suras, etc.), não chegando, entretanto, a constituir língua de comunicação cotidiana (DOBRONRAVIN, 2004, p. 325-326).
A criminalização do islamismo e da língua árabe após a revolta malê de 1835, quando o mero portar qualquer escrito árabe condenaria o seu portador à condição de réu, sujeito à deportação para a África, à exportação para outra província ou à tortura e à morte, levou ao desaparecimento de ambos, língua e religião (DOBRONRAVIN, 2004, p. 326; QUIRING-ZOCHE, 2004, p. 234).
Segundo Dobronravin:
Naquele tempo [século XIX], o árabe – principal língua escrita nas comunidades africanas, além do português – parece ter sido usado sobretudo para objetivos “mágicos” e religiosos. Não era uma língua instrumental, falada, embora praticamente todo descendente brasileiro de africano muçulmano deva ter aprendido algumas poucas expressões, ou mesmo preces e versos corânicos, em árabe. (DOBRONRAVIN, 2004, p. 325-326).
Assim, verificou-se, na Bahia escravagista, o recuo das línguas africanas e da língua corânica, em detrimento da língua da sociedade anfitriã, na qual, entretanto, exerceram influxo de superstrato, notadamente no léxico, como testemunham pesquisas lexicológicas e lexicográficas que tomam o léxico do português brasileiro como objeto.

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Apresentação

Este blog foi criado para compartilhar informações acerca das conseqüências do contato entre as línguas árabe e portuguesa verificado em 03 contextos específicos: a Península Ibérica medieval, o Brasil escravagista e o Brasil da imigração.
A este tema se dedica a autora deste 1992, quando se apaixonou pelo assunto ao preparar o trabalho de conclusão da disciplina Filologia Românica II (sobre o domínio lingüístico ibérico) na graduação em Letras na Universidade Federal da Bahia.
O referido trabalho, sobre o vocábulo azulejo, descortinou um mundo aparentemente perdido, europeu e medieval, mas que, em verdade, continua vivo no Português Brasileiro, nos arabismos transplantados com o Português Europeu, aos quais se juntaram outros, adquiridos já na Terra Brasilis, por meio de escravos islamizados e de imigrantes arabófonos que ainda hoje chegam ao nosso país.
Os arabismos do Português Brasileiro requerem investigação pautada na etnolingüística e na sociolingüística do contato intercomunitário, complementando o que a literatura especializada já documenta, mas que se restringe aos arabismos ibéricos, mencionando, quando muito, o influxo lexical da migração sírio-libanesa no Brasil.